quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Instante de olhar

Ela olhou a placa do carro à frente com final 44. Na adolescência, isto significava “ele te ama”. Mas só se estivesse pensando nele naquele exato instante de olhar. Enquanto isso, no rádio, tocava Nando Reis: “Por onde andei, enquanto você me procurava…” E aí, repleta de lembranças, ela chorou. Com a dor no peito dos que choram em silêncio no banco do carona e o motorista nem nota. Há quanto tempo acreditava que isso tudo já estava enterrado em algum canto de sua alma. E de fato estava. Prestes a ressuscitar em pleno trânsito de uma manhã chuvosa de julho. “Será que eu sei que você é mesmo tudo aquilo que me faltava…” continua Nando.

Jamais voltaria para ele ainda que implorasse de joelhos. Mas o que fazer com a sensação de sonho que insiste em ficar? A saudade é do sonho. Não dele.

Então lembra de quando ele encostou a cabeça na mesa pedindo silenciosamente um gesto de carinho da parte dela. Ela sabia o que ele queria. Mas sua mão ficou inerte. Tombada entre as pernas porque o sonho não estava mais ali. Tornou-se um aroma, uma espécie de névoa que, de qualquer forma, aprisionara seu impulso de se se lançar na escuridão. Cega, triunfante.

Primeiro passo de sua nova vida em direção a ele, a quem não queria mais. Ninguém mais.

Soube, porém, por terceiros, que ele estava bem. E feliz. Pelo menos é o que aparenta sua fisionomia de idiota em Paris num site de relacionamentos igualmente idiota. Na foto, de sobretudo escuro e cachecol, lembra um boneco de neve, ilhado de gelo por todos os lados, em volta do banco de madeira onde sentou para posar, já pensando no olhar de aprovação dos amigos de doutorado. Um meio sorriso bem conhecido da ex revela seu humor: “consegui”.

Mas só ela sabe os mecanismos de que lançou mão para viajar às custas de bolsa acadêmica. Seduzir a orientadora com ar de rapaz que não se presta a isso, imagina, eu… etc etc. Porque era assim que ele seduzia: instigando o desejo vil de certas mulheres em desvirtuar sujeito tão honesto e digno. Incapaz de trapaças.

A isca, aliás, era arrastada até o último minuto de testemunhar papéis assinados e passagem, vaga ou o que quer que o interessasse irremediavelmente em sua mala ou pasta. “Consegui”, com jeito de monge. Cabisbaixo, humilde.

Continuava olhando atentamente aquela foto e percebendo o passado escrito até ali. Até aquele meio sorriso. O mesmo que sorriu, anos atrás, quando a pediu em namoro.

“E se eu tô de dando linha é pra depois te abandonar”, confirma Ana Carolina, de quem ela não era nem fã. “Adoro essa música”, dizia ele com semblante inofensivo.
Não, é claro, sem antes fazê-la acreditar que jamais a abandonaria, “imagina eu… etc etc”, rapaz que não se presta a isso… Bom rapaz.

“Que sonho pequeno”, disse tempos depois certo homem com quem saíra num affair displicente. A quem contara o ocorrido num tom também displicente. “Era esse o sonho dele?”, desprezou.
Pior. Era o único.

Certa vez, perguntara a ele durante um almoço: “E depois? Depois que conseguir…”

Com olhar distante, vago, não deu resposta. O mesmo olhar que, ainda hoje, perdura naquela foto imbecil.

Feliz.

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Este texto também pode ser lido no site
http://segundaasexta.com.br/?p=2322
em que fui convidada do sábado.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Para Amy

Um silêncio que não antecede nada
Um segundo que não define o tempo
Às quatro para o meio-dia tive fome
E fui até a cozinha procurar algo para comer
Em infinitos cantos do planeta
Pessoas comuns como eu
Faziam e deixavam de fazer coisas banais
Envolvidas apenas em respirar
Em serem elas mesmas
Uma cadela sarnenta passou
Quando abri a janela
E o velho do morro na padaria
Sorveu seu café satisfeito
O sol não impediu um vento frio de ventar
E o céu pincelou de azul as águas da baía
Um homem pescando
Uma mulher dando de mamar
Gritos de crianças brincando de brincar
Jovens entre si
Enclausurados em suas próprias conchas
Um dia simples como os córregos
Um fim de semana como tantos outros
E você, darling, suspensa
Nunca mais sarcasmo
Nunca mais dor
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O som que não antecipa a música
O riso que não prevê o fim